Conhecido como um relicário religioso incrustrado na Bahia, por sua Igreja de Pedra e Luz, que atrai milhares de romeiros todos os anos, o município de Bom Jesus da Lapa também guarda riquezas históricas quando se fala de lutas e conquistas do povo negro no Brasil. Trata-se da comunidade remanescente de quilombo, o Quilombo Rio das Rãs, um exemplo de força, de tenacidade e vitória que muito orgulha seus moradores.
SUMÁRIO
Conheça o Quilombo Rio das Rãs em Bom Jesus da Lapa
Aproximadamente 700 famílias de Rio das Rãs estão distribuídas por diversos pontos da região, em localidades conhecidas como Passagem de Areia, Pedra do Cal, Barra, Aribá, Brasileira, Capão do Cedro, Riacho Seco, Baixa da Mula, Pitombeira, Rio das Rãs, Barreiro da Onça, Juá, Manga, Jacaré, Baixa do Mari e Enchu. São mais de 3 mil habitantes perfazendo as cercanias do lugar.
Importante ressaltar que “Quilombo do Rio das Rãs”, “Comunidade Remanescente do Rio das Rãs”, “Fazenda Rio das Rãs” ou apenas “Rio das Rãs” são denominações utilizadas para se referir à mesma área, situada à margem direita do Médio São Francisco, distante 970 km de Salvador.
Já a definição do termo quilombo aparece numa consulta ao Conselho Ultramarino ao Rei de Portugal, em 1740, como “toda habitação de negros fugidos que passem de 05 (cinco), em parte despovoada, ainda que não tenha ranchos levantados nem se ache pilões neles”.
“Quilombo” é uma palavra originária dos povos de línguas bantu (kilombo, aportuguesado: quilombo). Sua presença e seu significado no Brasil têm a ver com alguns ramos desses povos bantu cujos membros foram trazidos e escravizados aqui. O termo quilombo significa povoação ou fortaleza.
Como nasceu o “Quilombo do Rio das Rãs”
De acordo com algumas versões, duas ou cinco famílias teriam sido as fundadoras do que se chama, atualmente, de Quilombo de Rio das Rãs, embora, no início, não estivessem situadas nas localidades hoje habitadas e oficialmente reconhecidas nos processos de desapropriação.
A localidade onde nasceu Rio das Rãs se chamava Mucambo do Pau Preto ou simplesmente Mucambo. Historiadores deduzem que os primeiros negros chegados à região amocambaram-se em local de difícil acesso, cercado de matas e animais ferozes, passando a viver da caça, da coleta e de pequenas roças, por isso essa denominação anterior.
O espaço onde se encontra a comunidade passou a ser ocupado a partir do século XVI. No período que compreende os séculos XVII e XVIII, quando se encontrava na rota canavieira nordestina e mineradora, a região experimentou uma fase muito próspera, principalmente através da criação de gado.
Depois, porém, vivenciou quase 100 anos de adversidade econômica, devido justamente à decadência da atividade pecuária. Nesse período, permaneceram na região quase que exclusivamente negros e índios aquilombados.
Lei 601 ou Lei de Terras – Uma lei feita para institucionalizar injustiças
Em 1850, todavia, a chamada Lei 601 ou Lei de Terras, viria mudar tudo. É que no Brasil, os posseiros realizavam a apropriação de terras aproveitando brechas legais que não definiam bem o critério para ser proprietário de determinado lugar. Depois da Independência, alguns projetos de lei tentaram regulamentar essa questão, dando posturas mais claras para a efetivação do processo.
A Lei 601, então, seria feita para isso, mas surgiu em um “momento oportuno”, quando o tráfico negreiro passou a ser proibido em terras brasileiras. A atividade, que representava uma grande fonte de riqueza, teria de ser substituída por uma economia onde o potencial produtivo agrícola deveria ser mais bem explorado.
Dessa maneira, ex-escravos e estrangeiros teriam que enfrentar enormes restrições para possivelmente serem alçados a condição de pequeno e médio proprietário. Com essa nova lei, nenhuma nova sesmaria (terreno abandonado ou inculto que os reis de Portugal cediam aos novos povoadores) poderia ser concedida a um proprietário de terras ou seria reconhecida a ocupação por meio da ocupação das terras.
As chamadas “terras devolutas”, que não tinham dono e não estavam sob os cuidados do Estado, poderiam ser obtidas somente por meio da compra junto ao Governo. A partir de então, uma série de documentos forjados começaram a aparecer para garantir e ampliar a posse de terras daqueles que há muito já a possuíam.
Aquele que se interessasse em, algum dia, desfrutar da condição de fazendeiro deveria dispor de grandes quantias para obter um terreno. Assim, a Lei de Terras era muito injusta e transformou a terra em mercadoria, ao mesmo tempo em que garantiu a posse da mesma aos antigos latifundiários.
Desrespeito e ameaças em Rio das Rãs
Na prática, dentro de Rio das Rãs, a instituição da Lei de Terras fez com que grileiros, posseiros e “supostos” donos de terras buscassem obter ou regularizar títulos de propriedade sem levar em conta os direitos da população que historicamente ocupava a região. Foi nesse contexto que no final do século XIX, o coronel Deoclesiano Teixeira estabeleceu o controle sobre as terras dos quilombolas de Rio das Rãs.
Segundo relatam os moradores mais antigos da comunidade, seus antepassados entraram em acordo com o coronel e, na prática, os comunitários tornaram-se agregados, trabalhando para ele como vaquejadores.
Contudo, depois de quase um século de relativa calmaria naquele lugar, a comunidade enfrentou novas ameaças. Na década de 1970, novos conflitos se iniciaram na região. A violência foi intensa e muitos quilombolas foram expulsos, além de algumas localidades acabarem se extinguindo.
No início da década de 1980, a compra dessas terras pelo Grupo Bial-Bonfim Indústria Algodoeira agravou ainda mais a situação de conflito. Foi quando entrou em cena o fazendeiro Carlos Bonfim, à frente de um vultoso empreendimento agropecuário.
O tráfico nas águas do Velho Chico
A história de Rio das Rãs conta em boa parte a narrativa de constrangimentos e violência vivenciada nos quilombos pelo Brasil. O Rio São Francisco, aliás, era, comprovadamente, uma das rotas do tráfico interno, após as restrições inglesas ao tráfico de africanos para o País, a partir de 1831. Para se ter uma ideia, somente entre 1850 e 1864, 42 mil escravos teriam sido levados do Nordeste para o Sul do Brasil, sendo que parte desse tráfico passou pelo São Francisco.
Nessa luta em que saíram vitoriosos, os quilombolas de Rio das Rãs contaram com diversos aliados como o Ministério Público Federal, o Movimento Negro Unificado e a Comissão Pastoral da Terra.
Em 2000, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) finalizou o processo de desapropriação da chamada Fazenda Rio das Rãs para fins de reforma agrária, uma saída oficial para pôr fim a uma verdadeira guerra pela posse da terra, que há décadas atravessava a região. Com isso, a comunidade de Rio das Rãs teve as suas terras reconhecidas oficialmente.
Interessante destacar que um dos pontos mais fortes em Rio das Rãs diz respeito à sua cultura e à lembrança das lutas travadas. O povo na comunidade sempre exalta os saberes herdados por seus célebres e aguerridos antepassados africanos. É patrimônio do lugar a capoeira, o samba-de-roda e a música popular.
Referências:
https://www.redalyc.org/pdf/770/77002309.pdf
https://pt.wikiversity.org/wiki/Wikinativa/Rio_das_Ras
https://brasilescola.uol.com.br/historiab/lei-terras-1850.htm#:~:text=No%20entanto%2C%20somente%20em%201850,ser%20proibido%20em%20terras%20brasileiras